crónicas ortográficas de um alfassinha # 4, especial infância

ao ler uns dislates sobre a expedição moral do cardeal Ratzinger, vulgo papa, a Valência, com o propósito de pôr os hereges no caminho da família, veio-me à memória uma imagem recorrente, chaga de infância que vai não volta entretém conversas e provoca chistes e gargalhada. Embebido em educação e environment católico, e eu que me pelo por usar a linguagem do marketing e outras zombetarias de ir-ao-bolso, cercado pelas raízes familiares nortenhas, especialmente arreigadas no distrito de Braga, uma espécie de bocado da santa cruz lançado aos arrabaldes da Península, vi-me na contingência de aos nove anos participar na procissão de Sexta-Feira Santa, encarnando um dos vários Jesus que desfilam pelo empedrado, a santíssima trindade já custava a engolir, imagine-se como explicar a uma criança qual o sentido de existirem 8 ou 9 cristos, uns amarrados, outros com cruzes às costas, levezinhas de plásticos, carregadas sem esgares pela criançada habituada ao ritmo da sopa de cavalo cansado. Na contingência de Jesuar, dizia eu atropelando o Verbo, que como se sabe vinha no princípio, isso e as provas de costureira destinadas a enfarpelar-me a preceito, para isso a querida madrinha contribuiu, tal como para as almas, os pobres e os alfinetes, à época com uns quinhentos paus o que já era de monta, estava-se em 1984, vinha ao longe a medalha do Carlos Lopes mas a minha corrida era outra. Pela tarde chuva bíblica, nada de estranhar num ponto de Portugal que podia ser conhecido como O Aquário, a procissão em risco, a criançada que nunca mais podia sair para o quartel dos bombeiros - outro presságio de águas correntes - por forma a vestir a fatiota, decorar a moleirinha com peruca e auréola e a mim, que me saiu o Cristo na lotaria dos outfits, ainda usufruí de correspondente coroa de espinhos, felizmente tão plástica como as cruzes dos senhores dos passos, assim apelidados não por caminharem mais do que os outros mas sim por trajarem de roxo, maldita cor de luto, lamento e bares foleiros de góticos com eyeliner.
A intempérie lá se dissipou, numa espécie de milagre de fibras tingidas e lá arrancou o cortejo das portas da Sé, erigida por Visigodos, povo tão antigo como as mentes que ainda a habitam de buço arreigado, mas o pior ainda estava por ouvir. "O Senhor da Cana Verde - eu - não pode levar os óculos", pois claro, em 33 depois de mim ainda não havia armações foleiras de metal a marcar os narizes dos milagreiros e de outros gentios, cana verde porque eu levava uma entre as mãos, nunca desvendei o sentido de tal iconografia, talvez embaraçado pelo facto de seguir com os pulsos enleados em cordame, distribuído em quatro pontas por quatro gaiatos da minha idade trajados à romana, e vai daí que nunca lhe busquei o sentido. Desgraçadamente não soube fazer o milagre das dioptrias desvanecentes e lá segui, em noite fria de páscoa, sem nenhum parente à mão de semear, nem sequer ninguém vagamente conhecido, desculpa lá Verónica, e tu também Maria Madalena, sem ver um palmo à frente do nariz, sob o olhar entusiasta dos mirones que assobiam ao ver abrir o cortejo com cavalos da GNR, atiram larachas às criancinhas vestidas de anjinhos, cristos, marias, romanos, príncipes de pena no chapéu (outro mistério iconográfico), escuteiros que levam os mais pequenos ao colo, "rouge rouge", expressão popular que designa os encapuçados que vão cobertos de preto, descalços a pagar promessas ou outros dislates, o povoléu a rejubilar e eu com uma névoa a 360º. Após dar a volta a meia cidade finalmente terreno reconhecível, a rua da minha já desaparecida avó e da minha madrinha, rua visconde pindela, de belfas voltadas para a Sé, eu a reconhecer o casario mas não as gentes, sabia apenas que o fim estava próximo e que o meu Gólgota seria uma fatia de pão de ló e um debicar de vinho generoso, adjectivo injusto pois que este devia classificar os meus parentes, diligentes em agraciar um esforçado menino com um néctar, esse sim, de deuses. Dizem as crónicas que eu, ao sentir aproximar-se a zona da família, compenetrei-me em ares de desgosto, de verdadeiro calvário, manifestando queda para um certo teatro de costumes e não para um certo chão de paralelipípedos, gesto plausível de suceder dada a falta das lentes e respectiva armação. Como cereja no topo do bolo uma nota de milagre classe média - dada a modéstia do agregado familiar, então ainda mais assanhada, não havia câmara fotográfica para registar o momento, aleluia, aleuia, pude ressuscitar para a normalidade, acossado apenas por memórias próprias e relatos de família, já que em boa hora não houve nenhum rolo Kodak a fazer de Judas Iscariote.
Estava garantida a hombridade de um blogger sem salvação.

3 comments:

Miguel Pinto said...

Olha rapaz,

Eu fiz de São José num teatrinho da escola primária, com promessa de castigo de régua se não me portasse bem, o que acrescenta uma pimentinha de violência ao relato.

Seja como for deves-me respeito filial, parece... O que vale é que eu ando de óculos mas sem a régua punitiva.

Abraço,

Miguel

Kukas said...

Sublime

Anonymous said...

Momentos de rara beleza.Grande escrita criativa!