grande gala 'azinheira spoken word', tomo 2

Ver a luz


Os meninos amanhavam-se com os cajados, três bordões de madeira talhados para mãos pequenas, que amassavam a folhagem e eram agitados no ar para apartar as cabras.
Os meninos também gritavam, uns com os outros e com o rebanho, comandando as bestas por entre o terreno bravio. Frio. Chegavam-se uns aos outros, abraçavam os agasalhos, botavam ar quente nas mãos pequenas, o rapaz arrotava as papas de sarrabulho tomadas de madrugada e as raparigas riam.
Os meninos com cajados, a gritar atrás das cabras, marcavam caminho com mijo quente, que mandavam para fora do corpo a tremer, de tempo a tempo. Queriam a caminha, o cheiro a sopa de feijão para o jantar, a latrina das fezes, o papá e mamã a limpar-lhes as remelas com saliva.
Andaram os meninos. Andaram as cabras. Revolveram-se as tripas à hora de manjar e, em rezando o terço ensinado pelas gentes da terrinha, levaram o cu ao chão para trincar o pão, sob a azinheira das pelotas e a luz. A luz. Os meninos puseram-se a olhar para a luz, a luz, que luz, a luz que faltava naquele dia de pastagem que não lembrava ao menino Jesus. As raparigas gemeram, assustadinhas, entrelaçaram as mãos e baixaram os olhos na direcção da merda das cabras. O rapaz peidou-se, mas foi do susto. E os anos passaram. Com os meninos a piarem fino, ajeitou-se a morte em passagem cá por cima e longe das cabras houve trupes de bolcheviques a marchar, marchar. Antes caiu um czar. E os anos passaram.

Sob a azinheira das pelotas e a luz, lembram-se, juntou-se pedra e empoleirou-se a cruz, levaram-se gentes para a bênção do capelão, gentes em ferida de sangue, a chafurdar na poeira. Outros meninos perguntam como é dado a sofrer por gosto nos mistérios da fé. E a luz, alguém viu a luz, a luz, que luz.


Hugo, inquilino do solvstäg

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