convidado pelo corta-fitas a meter lá o bedelho pus-me a martelar o teclado. eis o resultado:
andar aos cartões
quando folgo ao sábado há uma coisa que me dá um gozo imenso, sair para a rua com disposição caminhante e errar avenida abaixo até ao rossio, ruas da prata e do ouro, martim moniz com passagem pelo supermercado chinês, laréu pelo largo de são domingos qual ginja district, praça da figueira, enfim, todos os locais onde o degredo, o insólito e o pitoresco pululam. sucede que hoje, ao encontrar o zarolho traficante de cromos que me cobrou dois euros pelo último da colecção mundial 2006, louvada seja a panini, lembrei-me que o seu outro mister está exactamente abaixo da espada de dâmocles, neste país que se quer moderno e informatizado: o cartão do cidadão. o zarolho, como outras aves raras da baixa, plastifica, que é como quem diz, envolve os nossos documentos numa película semi-rígida que permite a sobrevivência duradoura dos nossos cartões de eleitor e da segurança social, aliás, suspeito que muitos desses cartões sobreviverão à própria SS, veja-se lá a sigla que arranjaram para a protecção social, já que hoje em dia bom, bom é atrelarmo-nos a uma seguradora que nos conforte a velhice, que a solidariedade entre gerações é coisa que se fica agora pelos concertos dos rolling stones. pois bem, o cartão do cidadão, ornado de chips, bandas magnéticas e data information, atacado por um outro liberal da nossa praça saudoso dos tempos de oxford e da inexistência de bilhete de identidade, dará uma machadada fatal nos plastificadores, quais operários do vale do ave, que perderão a matéria-prima de sustento em favor da tecnologia, e assim lá se vai mais uma marca de humanidade da baixa que eu aprecio. ninguém sabe de bola mais do que eles, de gossips governamentais e de mamas de turistas, já viram de tudo, milhares de identidades já lhes passaram pelos dedos, em matéria de x-actos e películas aderentes ninguém os bate, tudo agrupado em banquinhas desmontáveis que mais parecem uma curta do kusturica, tal é a parafernália digna de um pai de santo ambulante. adivinha-se então a extinção dos plastificadores, numa cidade que é cada vez mais tecnocrata, moderna e oca, em vez de gente temos key account managers, top sales qualquer coisa, chief executive accounts, shareholders, gestores de produto, utentes em vez de pacientes, colaboradores em vez de trabalhadores, muitos entretidos ao entardecer numa cave de são sebastião, meio harrod's meio pipocolândia, onde se degustam umas tapas que podem não ser mais do que uma sandocha de lula frita mas que ganham o estatuto de bocadillo de calamares, assim mesmo, em estrangeiro. e aposto que a palavra gourmet anda lá pelo meio. eu cá sou suspeito, gosto de couratos, minis e tremoço, de micar os mitras e de vampirizar-lhes o paleio. mais. numa época em que ninguém dá nada a ninguém e em que tirar aos outros é governo de muitos sempre prefiro as artes de casaco à banda e mãozinhas leves dos carteiristas do 28, sem contratos nem letras miudinhas, às facadas na classe média dadas pela euribor ou pela cofidis. é mais a minha praia. quer dizer, a minha cidade.
a foice em seara alheia
Publicada por pedro vieira em 6.6.08
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1 comment:
Bem Hajas Irmãolucia pela tua voz(que ninguem poderá calar, espera-se), por nos lembrares do fim dos plastificadores. Na minha zona os peripatéticos preenchedores de impressos para o BI também se foram. Em vez de vendedoras de sucedâneos de chocolate temos tapas gourmet. Não é só um património que se perde. É uma gimbrice modernaça que se ganha. Afinal Lavoisier estava enganado.
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