COVA DA IRIA (E EU FUI)
Sim, sei do que falo, não é por ouvir dizer. Eu estive lá, em Fátima, no Santuário, num 13 de Maio, com os peregrinos todos à volta e as velinhas acesas como um mar de chamas a fazer lembrar, perdoai-me ó crentes, mais um reflexo do inferno do que a via para a salvação das almas (seja isso o que for). Eu estive lá e vi isso a que muitos chamam as “manifestações da fé”. Joelhos rasgados, lágrimas, mulheres de negro a arrastarem-se pelo chão em nome de uma promessa. E vi camponeses com terra por baixo das unhas, pasmados com a grandeza do Santuário. Velhos a aliviarem as dores dos pés cheios de bolhas, mergulhando-os em alguidares de plástico com um palmo de água. Ouvi rezas murmuradas pela multidão, cantilenas esganiçadíssimas (“Avé, Avé, Avé Mariiiiiiiiiiiiiiiia”), a voz pastosa dos bispos, um holocausto de cera a derreter junto à capela onde Nossa Senhora espera em forma de estatueta pela lentidão ritual das procissões. Estive no meio daquilo tudo, como quem olha de fora para uma coisa que não compreende, à espera de compreender. No meio daquelas pessoas que fizeram centenas de quilómetros a pé só para estar diante do “altar do mundo”, pedindo à Virgem milagres cuja mera formulação desrespeita quem na verdade os tornou possíveis (os médicos, por exemplo; mas tantas vezes o acaso), no meio daquelas pessoas tentei descer da minha condição de ateu assumido, laico até à medula e com acessos frequentes de anti-clericalismo, para me aproximar de linguagens que me são estranhas. Juro que tentei. Mas não consegui. Porquê? Nem vale a pena explicar. Vocês sabem. Fátima é um embuste, uma alucinação de miúdos impressionáveis que a Igreja aproveitou para circunscrever, à distância, o perigo vermelho que começava a emanar da velha Rússia. Tudo o resto é esperteza saloia (os três segredos), crendice de raízes pagãs e retórica reaccionária urdida pelo lado mais obscuro da hierarquia católica. Terceiro-mundista, anacrónica, parola, com as suas lojas de pechisbeque e néon, atafulhadas de Cristos em holograma e Nossas Senhoras que mudam de cor com a humidade, Fátima continua a atrair magotes de gente? É verdade. Como há magotes de gente a estupidificar-se ao domingo nos centros comerciais e a dar maiorias absolutas a Alberto João Jardim. Eu estive em Fátima, num 13 de Maio, por entre as velas. E onde tantos encontram serenidade e conforto, só descobri, em todo o seu esplendor (isto é, em toda a sua miséria), o Portugal que me desilude e agride a cada passo. Para muitos, Fátima é a luz. Para mim, continua a ser um calafrio.
Zé Mário, inquilino d'a invenção de morel
grande gala 'azinheira spoken word', tomo 10
Publicada por pedro vieira em 13.10.07
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