luiz pacheco fez o último manguito

© rabiscos vieira

Já de madrugada, o Mensageiro das Trevas aparece-me na cama, agarra-me quase ao colo com os seus dedos de aço nos braços e diz-me baixo, numa voz irónica mas simpática (ou cínica e trocista?): «Ontem (referência, parece, a um sonho meu da véspera, em que me surgia A Morte, com a sua caveira comum, de dentuça à mostra, cara desgraçada!), ontem viste-me com a minha triste cara verdadeira, hoje venho alegre (a face dele era uma máscara apalhaçada, coberta de giz), mas é para te dar uma má notícia, coitado:

AMANHÃ MESMO MORRERÁS!»

Acordo aos estremeções, aflito, com uma consciência muito nítida do encontro, e começo por fazer figas debaixo da roupa ao Intruso, mas depois, cheio de uma superstição infantil (que me ficou de criança, entenda-se), faço o sinal-da-cruz. E para não tirar as mãos debaixo do quente das mantas, engrolo gestos e palavras mesmo sobre o peito, à matroca, como um aprendiz de catequese faria. Sossego mais. Começo a pensar como morrerei.

Exercícios de estilo, Estampa, 1998


vai-se um autor muito de cá de casa e num ponto discordo do daniel – as entrevistas tragicómicas, nomeadamente uma dada ao DNA há uma dezena de anos, serviram para iluminar iletrados como eu que desconheciam o personagem. e à guisa dos dislates passei também a conhecer o escritor. o disparate pode ter a sua função social.

1 comment:

Olaio said...

Este texto é o inicio de "O Libertino passeia por Braga a idolátrica o seu esplendor", um extraordinário e impar texto da literatura portuguesa.
E concordo com a sua opinião, quando por trás do disparate há uma obra (vida)como a dele.